Participei, representando o Bahiadoc – arte documento, do VII Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual, agora Cine Futuro. Os resultados da participação do Bahiadoc – que enfatizou os temas ligados ao aspecto documental da arte audiovisual – estão disponíveis no blogue especial Bahiadoc no Cine Futuro. Há vídeos com trechos selecionados de mesas redondas, diálogos com realizadores convidados e o vídeo resumitivo do Bahiadoc (segue abaixo), com conversas com realizadores, entrevista exclusiva com Peter Joseph, artivista realizador da trilogia Zeitgeist, e com Ivana Bentes, pesquisadora, escritora e curadora das mesas redondas no Cine Futuro. Depois do vídeo, minhas impressões pessoais sobre o Seminário.
Embora o Cine Futuro tenha contemplado o cinema latino-americano com a exibição do filme cubano “Memórias del Desarollo”, de Miguel Coyula, senti, particularmente, uma imensa lacuna: não notei a participação de filmes nem de cineastas peruanos, mexicanos, argentinos – em contrapartida, houve presença maciça de cineastas franceses. Com exceção do holandês/indonésio Leonard Retel Helmrich, cineasta e documentarista que implementa métodos inovadores para construir ângulos inusitados a partir da utilização de câmeras e equipamentos baratos, flexíveis e até improvisados, não percebi maiores contribuições de cineastas e palestrantes europeus.
Zelito Viana, cienasta e produtor, apresentou o documentário “Augusto Boal e o Teatro do Oprimido”. Boal é um sujeito artístico fundamental cuja importância ainda não foi reconhecida adequadamente segundo a dimensão de seu pensamento e trajetória. Nesse ponto, o documentário é importante: apresenta Boal e registra suas falas sobre arte, teatro e política. Contudo, não traz depoimentos de figuras importantes na trajetória de Boal, como Tom Zé, apresentando, destacadamente, um depoimento fraco de Chico Buarque, o que me pareceu um mero recurso para revestir o vídeo de alguma autoridade célebre. Sedundo Zelito, Tom Zé, Maria Bethânia e outros artistas que poderiam falar com propriedade sobre Augusto Boal não participaram do documentário por conta de uma dificuldade logística: o vídeo não teve patrocínios e o realizador contatou as pessoas que lhe eram mais próximas e facilmente acessíveis.
Pude conversar com Peter Joseph, realziador da trilogia de vídeos Zeitgeist, cujo conteúdo questiona radicalmente os paradigmas sociais e culturais hegemônicos em nossa época. Fiz algumas provocações, como questioná-lo sobre a sua participação em eventos como o Cine Futuro, patrocinado por grandes corporações e empresas petrolíferas. Também pedi que ele comentasse sobre suas perspectivas sobre o Brasil, país que começa a alcançar novo patamar no cenário geopolítico global, mas que implementa políticas desenvolvimentistas retrógradas, como mega-empreendimentos energéticos para suprir interesses de grandes indústrias (mega-hidrelétricas e nucleares), além de preparar-se para exploração da vasta camada petrolífera do Pré-Sal. Peter respondeu bem as questões – confira as respostas no vídeo com trechos de seus diálogos (no qual ele fala também de suas influências musicais, literárias e filosóficas).
Por fim, menciono a nossa conversa com Ivana Bentes, curadora das mesas redondas do Seminário. Ivana criticou a ingenuidade do discurso de Peter Joseph em alguns aspectos, mas indicou a importância da repercussão de seus filmes a partir das redes, gerando movimentos ativistas globais.
Tocamos na polêmica do coletivo Fora do Eixo (escrevi neste blogue uma crítica à defesa que Ivana faz ao coletivo como fator de subversão do sistema capitalista). Ivana voltou a recorrer aos conceitos de fluxos em contraposição aos, segundo ela, obsoletos discursos de transformação súbita e radical do capitalismo. Para Ivana Bentes, o capitalismo venceu, e sua própria dinâmica destrutiva forçará o sistema a se renovar – para tanto, segundo Ivana, o coletivo Fora do Eixo contribui de forma. Para mim, não: o Fora do Eixo nada subverte em termos de sistema capitalista, e o coletivo atua apenas como amálgama de empresas voltadas para a exploração do mercado cultural (sobretudo de música), explorando agentes independentes num sistema que alcança o mercado através de apropriações simbólicas e ações sistemáticas de captação de recursos públicos.
Enfim, estive na sessão avant-première do filme de Edgard Navarro, “O homem que não dormia”. Saí no meio da sessão, pois senti que – embora o filme apresentasse uma temática interessante – o seu ritmo e construção me pareceram bastante ruins, não me apreenderam tal como eu exijo dos bons filmes.
Infelizmente, duas coisas me entristeceram e até me enojaram nesta dita sessão especial do cinema baiano: o discurso absolutamente descarado e medíocre de todos que falaram ao microfone no palco do TCA, exigindo dinheiro público para sustentar suas vidas, suas obras e suas empresas. Claro que políticas públicas de fomento à Cultura devem ocupar o seu importante lugar social, mas antes de eleger esta causa como um fim vazio e obcecado, é fundamental para o artista identificar seus próprios meios. Isso não ocorre na Bahia, infelizmente.
A segunda coisa foi a decepção com o curta que abriu a sessão do longa de navarro. “Olho de Boi”, de Diego Lisboa. Bem dirigido, com uma fotografia e um ritmo que até me agradaram esteticamente, acabou destruído por conta da, digamos, ética da mensagem – esdrúxula, ao meu ver. O filme, feito na favela do Bate Facho com atores daquela comunidade, narra a história de um menino que enfrenta uma espécie de bullyng por parte de outros meninos de sua rua, sente medo, encontra um preto velho (Carlinhos Brown), que lhe dá três olhos de boi que deverão defendê-lo, mas somente se o menino tiver fé. Quando o menino se vê cercado pelos seus opressores, recorre aos artefatos que o preto velho lhe deu, mas de nada adianta: o menino não teve fé. Chega em casa, triste, a mãe o recebe carinhosamente e a porta da casa se fecha – primeiro plano na plaqueta pregada a porta: Deus é Fiel. Fim. – Mesmo ignorando os elementos cinematograficamente desnecessários, acusar a falta de fé de um menino pobre, interpretado por um menino pobre, de forma tão clichê, me doeu o espírito e agrediu meu gosto cinematográfico.
Mas gosto é gosto. O que incomodou de verdade é que eu tinha previsto que este curta seria campeão da mostra competitiva. E foi! – Não apostei nele por suas qualidades, como é evidente; mas simplesmente por se tratar de uma produção baiana. Depois dos discursos de cineastas e produtores reclamando mais e mais grana pública – sem nenhuma referência breve à arte – é fácil deduzir que premiar filmes baianos reforça o argumento em torno das exigências de mais verbas públicas.
Em suma, participei de boas discussões e conversas, durante as quais pude aprender um pouco mais sobre cinema, e sobre o fazer cinema. É muito bom que o Seminário aconteça em Salvador, e espero que aconteça sempre e se renove e amplie a cada edição. Quanto ao cinema baiano, não posso falar muito, mas creio sempre, considerando a nossa história, no potencial da Bahia como terra de vanguarda cultural. Quando focarmos nos meios artísticos, e não nos fins pecuniários, o cinema aqui, sem dúvida, renasce: calcado na vontade de fazer, no enfrentamento dos desafios, no encantamento da beleza, no esforço criativo desinteressado, na atitude colaborativa e na inventividade do cotidiano.